Daniela Gondim – Foto: Divulgação
Entre as estreias mais esperadas da programação oficial de leituras do Festival de Cinema de Cannes, está “Nossos Caminhos” — drama intenso que percorre memórias, traumas e a força resiliente de duas irmãs nordestinas. A atriz Dani Gondim, ao lado da diretora e roteirista Carla Di Bonito, será responsável por dar voz à história em uma leitura pública que já nasce simbólica: é a primeira vez que Dani participa de um projeto autoral com esse alcance internacional e impacto social.
Baseado em fatos reais e com o sertão brasileiro como cenário, o roteiro acompanha a trajetória de Carla e Luzinete, duas irmãs marcadas por uma infância de abandono e violência, em meio a um Brasil de ditadura, religiosidade popular e feridas sociais ainda abertas. A obra expande o universo do curta “Luzinete”, já consagrado em mais de 220 festivais, e coleciona prêmios antes mesmo de ser filmada — são mais de 40 reconhecimentos internacionais apenas na etapa de desenvolvimento de roteiro, com destaques em categorias como direitos humanos, roteiro autoral, longa internacional e melhor roteirista do ano.
Nesta entrevista, Dani Gondim fala sobre o processo de criação da personagem, o encontro com uma nova linguagem cênica, sua conexão com o sertão e os motivos que a levaram a abraçar um cinema que toca, denuncia e transforma.
Harper’s Bazaar Brasil – Dani, como foi o convite para integrar a leitura oficial de “Nossos Caminhos” em Cannes — e o que esse momento representa na sua trajetória artística?
Daniela Gondim: Quando a Carla de Bonito me convidou, eu me senti extremamente honrada. Nossos Caminhos (OurPaths) é um filme que se conecta com a alma das pessoas, uma história verídica. Representar o cinema independente, entender sua potência e o quão longe ele pode chegar — quantos prêmios esse roteiro já ganhou! — é um privilégio. Participar desse projeto representa muito na minha trajetória artística. A maioria dos trabalhos que fiz até hoje foi para grandes empresas privadas. Agora estou transitando por outro universo, descobrindo novas formas de produção, captação de recursos… Está sendo um prazer conhecer esses processos e ampliar minha visão sobre a multiplicidade da arte nacional e internacional.

Daniela Gondim – Foto: Divulgação
HBB – A leitura de um roteiro em Cannes já é, por si só, um feito raro. O que você sentiu ao dar voz a uma história tão densa e simbólica como a de Carla?
Daniela Gondim: O filme Nossos Caminhos (OurPaths) foi baseado na história da Carla de Bonito e da irmã dela, Luzinete. É uma narrativa profundamente marcante, que atravessa as pessoas e revela uma realidade muitas vezes silenciada no nosso país. Quando eu entrei nesse projeto, pude sentir e internalizar essa vida, me conectar com as minhas raízes, com o que eu vivi, com o que ela viveu… Foi muito transformador para mim, artisticamente.
HBB – Você está vivendo um processo intenso de preparação com a Maria Fernanda Marinez. Como tem sido esse mergulho na personagem e quais camadas você tem descoberto em si mesma?
Daniela Gondim: A Maria me apresentou uma nova forma de interpretação com a técnica Meisner. Eu não conhecia e, inicialmente, não entendia essa possibilidade na atuação. Ela trabalha com a técnica de decorar textos sem nenhuma intenção prévia. Isso vai na contramão de tudo que aprendi até hoje — sempre estudei textos buscando as intenções por trás das palavras. Mas, segundo ela, essas intenções surgem na ação, na verdade da cena, no momento presente. Isso tem me feito me redescobrir como atriz. Estou mergulhando de corpo e alma nesse processo, aberta ao estudo e a ampliar meu repertório. Acredito que não exista uma única forma de atuar, nem um jeito certo. Tem conexão — cada projeto pede uma entrega nova. E, para esse, essa técnica será essencial. Encaixa perfeitamente.
HBB – O filme retrata o Brasil profundo, com recortes do sertão, das religiosidades populares e da ditadura. Como foi o seu contato com esse universo? Ele dialoga com sua própria história de vida de alguma forma?
Daniela Gondim: Eu e Carla somos mulheres cearenses, de famílias do interior do Ceará. Temos algumas semelhanças estéticas, mas, fora isso, a história da personagem é muito distante da minha realidade. Justamente por isso ela me fascina tanto. Ao interpretá-la, descubro novos lugares em mim. Tento entender por que ela tomou certos caminhos, o que foi diferente nas nossas trajetórias para que nossas histórias sejam tão distintas.
Mas existe um ponto de conexão: o amor de sua mãe de coração. Apesar de não ser filha adotiva, a forma como essa figura materna a amou, cuidou, zelou por ela… Isso permitiu que ela florescesse. É nesse lugar que ela se fortalece.
HBB – A leitura em Cannes também simboliza uma virada de página na sua carreira. O que te motivou a buscar projetos com esse viés mais autoral e social?
Daniela Gondim: O que me motivou foi a minha própria vida, a forma como tento conduzi-la. Sempre busco que meu trabalho esteja conectado com causas socioambientais. Cada vez que conquisto algum espaço ou poder, tento usá-lo para fortalecer quem está ao meu redor. Por viver assim, esses projetos acabam me encontrando, se conectando comigo de forma natural.

Daniela Gondim – Foto: Divulgação
HBB – Você mencionou que interpretar Luzinete é como revisitar sua identidade. Quais descobertas pessoais essa personagem tem despertado em você?
Daniela Gondim: A personagem Carla me fez revisitar questões profundas. A Carla, além de personagem inspiração, é a autora do texto, uma mulher potente, inspiradora. Ouvir sua história, sua coragem em contá-la, é algo pulsante. Para interpretá-la, precisei fazer perguntas muito íntimas, tentando colocá-la apenas no lugar de autora, diretora. Às vezes é incômodo, mas ela, com toda sua generosidade, doou sua vida à arte.
Isso nos aproximou. Criamos uma conexão de respeito, de orgulho por essa trajetória. Fui me apropriando dessa história, de um caminho que levou uma mulher nordestina, pobre, do sertão, a se tornar uma potência.
HBB – O roteiro de “Nossos Caminhos” já foi premiado em mais de 40 festivais. Como tem sido representar um projeto com tanto reconhecimento internacional? Sente alguma responsabilidade extra?
Daniela Gondim: Sem dúvida, há uma responsabilidade grande. É um privilégio fazer parte de um projeto com tanto reconhecimento internacional. Representar essa história, dar voz a essas vivências, é uma grande honra. Me sinto atravessada por essa narrativa e, ao mesmo tempo, comprometida com a forma como ela será recebida. Quero fazer jus à sua potência.
HBB – A obra também discute dor, abandono e resiliência feminina. Como você lida emocionalmente com essas temáticas tão sensíveis no seu processo de construção de personagem?
Daniela Gondim: Eu sou apoiadora e investidora de projetos sociais que trabalham com o resgate de mulheres em situações de vulnerabilidade. Já vi vidas sendo transformadas por meio desses trabalhos. Acredito que contar essas histórias é essencial — mostrar que existe um caminho possível, de potência, onde essas mulheres podem se apropriar de suas vidas e narrativas. Para mim, esse é o verdadeiro poder feminino. E é essa a voz que quem tem poder e visibilidade deve ecoar.

Daniela Gondim – Foto: Divulgação
HBB – Além de Cannes, o que vem a seguir na sua carreira? Pode compartilhar outros projetos ou planos?
Daniela Gondim: Além do Festival de Cannes e meus estudos pessoais, me dedico à edição das minhas músicas autorais. Pretendo lançar um álbum até 2026. Quero que seja uma obra audiovisual — estou roteirizando e planejando clipes para todas as músicas. Para mim, música e imagem andam juntas. Quando escrevo, já imagino o filme da canção. Estou me organizando para reunir o elenco e gravar os videoclipes. É um processo criativo delicioso. Intenso. Esse desenvolvimento às vezes fica em segundo plano por conta dos projetos como atriz, mas gosto de circular entre as artes e perceber a múltipla artista que sou.
HBB – Por fim, o que você espera que o público internacional leve consigo ao entrar em contato com essa narrativa tão brasileira — e tão universal ao mesmo tempo?
Daniela Gondim: Estou levando para Cannes peças de roupas, bolsas e acessórios produzidos por projetos sociais com os quais colaboro. São feitos por mulheres que passaram por situações de vulnerabilidade. Tem bolsa feita com material reciclado, renda de bilro — um ponto típico do interior do Ceará que está desaparecendo porque as novas gerações não aprenderam a técnica. Tudo é feito por mulheres nordestinas. Quero que o público internacional veja isso: a potência da arte brasileira, especialmente a que vem de mulheres. É isso que quero mostrar: a beleza, a força, a história que existe em cada detalhe do que levamos ao mundo.