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A semana de alta-costura em Paris voltou a reafirmar sua posição como o ápice da moda, onde tradição, inovação e arte se entrelaçam em coleções que vão muito além do vestuário. Nesta temporada, vimos estilistas consagrados e novos nomes revisitando legados, explorando temas urgentes e apresentando criações que dialogam com o presente e apontam para o futuro. Do espetáculo sensorial de Iris van Herpen às penas reinventadas de Viktor & Rolf, passando pelas mensagens profundas de sustentabilidade de Ronald van der Kemp e os ritos de passagem de Glenn Martens na Margiela, a alta-costura se mostrou plural, vibrante e cheia de significados.
Este panorama traz os destaques que marcaram a temporada, celebrando a excelência artesanal, a poesia das formas e o poder da moda como expressão cultural e política. Um convite para mergulhar nos universos singulares de cada maison e entender como o luxo contemporâneo se reinventa para encantar, provocar e inspirar.

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A passarela performática de Iris van Herpen
Iris van Herpen retornou à alta-costura com um desfile que foi mais do que moda: foi manifesto, instalação e espetáculo sensorial. Inspirada pela “Dança da Serpentina”, de Loie Fuller, a estilista abriu sua apresentação com uma performance da dançarina Madoka Kariya imersa em lasers, evocando marés cósmicas e forças invisíveis. Batizada de Sympoiesis, a coleção abordou a relação simbiótica entre humanos e oceanos, trazendo à tona questões urgentes sobre sustentabilidade e conexão com a natureza. Cada look parecia um ecossistema em si — do vestido vivo com 125 milhões de algas bioluminescentes aos tecidos aéreos japoneses que flutuavam como águas-vivas.
Van Herpen levou sua pesquisa estética e tecnológica a um novo patamar, colaborando com engenheiros e bio designers para criar peças que desafiam as noções de matéria e tempo. Embora algumas criações não sejam comercializáveis — como o vestido de algas que vive em câmara de vidro climatizada —, o desfile cumpriu seu papel ao provocar emoção, admiração e reflexão. Mais do que representar a natureza, Iris propôs um novo pacto com ela: de respeito, interdependência e poesia. Uma couture que respira, pulsa e nos devolve ao mistério do que é estar vivo.

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O lado sombrio da Schiaparelli
Daniel Roseberry mergulhou no passado turbulento da Europa pré-Segunda Guerra para construir uma coleção de alta-costura que é ao mesmo tempo uma homenagem sombria e uma reflexão sobre o presente. Inspirado pelas imagens em preto e branco de Man Ray e Horst, o designer revisitou a estética de Elsa Schiaparelli com um novo filtro: menos teatralidade exuberante, mais introspecção dramática. A dualidade entre luz e sombra permeou as peças, como o terno de tweed Donegal coberto por tule preto e vestidos de cetim recortado que capturam a silhueta com a mesma precisão de um holofote. A coleção começou e terminou com réplicas de peças históricas da maison, como o tailleur preto bordado e a capa “Apollo”, usada de trás para frente — metáfora literal para os tempos invertidos que vivemos.

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Grande destaque foi o look que trazia um amplo colar inspirado no coração de Salvador Dalí, que parecia pulsar e se mover conforme o sangue bombeava, o coração batendo na passarela, nomeado por Daniel Roseberry em suas redes sociais como “o batimento da alta costura” bordado em um vestido vermelho que, com seu relevo na parte de trás, realça as formas femininas e cria uma ilusão de ótica, dando a impressão de que a modelo caminhava de costas.
Apesar dos momentos virais — como Cardi B segurando um corvo vivo nos portões do Petit Palais —, Roseberry reduziu o excesso e abraçou a fluidez. Abandonou quase totalmente os espartilhos, trocando a rigidez por cortes enviesados e ternos de alfaiataria suave que deram protagonismo à técnica e ao caimento. O surrealismo continua presente, claro, em elementos inesperados como um vestido com busto falso nas costas e um colar de coração pulsante abaixo da nuca, mas há uma contenção estratégica. Em meio às mudanças sísmicas no setor de luxo, a coleção parece um prelúdio de algo mais profundo: uma transição do espetáculo para a substância.

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Giambattista Valli: condecoração e couture em estado de graça
Na mesma noite em que foi condecorado Oficial das Artes e das Letras pela Ministra da Cultura da França, Giambattista Valli apresentou sua 29ª coleção de alta-costura — um epílogo poético para uma carreira que segue celebrando a leveza como potência. O estilista transformou sua sede em Paris em um cenário intimista, onde as peças foram exibidas em manequins, permitindo a apreciação detalhada de pregas meticulosas, drapeados etéreos e bordados tão delicados que pareciam plumas, mas eram organza de seda. Rodeado por suas musas e amigas — como Bianca Brandolini, Giovanna Engelbert e Lauren Santo Domingo, o momento foi de consagração e emoção.
Valli resgatou o espírito dos mestres do rococó, como Watteau e Fragonard, não apenas nos volumes e tons pastéis, mas na atmosfera leve, quase onírica, que permeava a coleção. Em vez de adornos exuberantes, ele apostou na precisão do corte e na fluidez da silhueta. Vestidos em tule pervinca e musselina rosa pálido flutuavam como visões pastorais, com flores de tecido repousando suavemente sobre bustos e mangas. Mais do que uma homenagem à feminilidade, o desfile foi uma ode ao savoir-faire francês — e ao poder sereno de uma mulher livre.

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O último desfile da Chanel antes da estreia de Matthieu Blazy
A Chanel recriou seu lendário salão da Rue Cambon no andar superior do recém-reformado Grand Palais, em Paris. Com tapetes brancos, cortinas do chão ao teto e painéis espelhados inspirados na famosa escadaria Art Déco de Coco, o ambiente silencioso evocava o ritual exclusivo das provas de alta-costura — e reafirmava o compromisso da maison com seus códigos clássicos. Sem um diretor criativo nomeado desde a saída de Virginie Viard, coube à equipe interna apresentar a coleção, marcada por uma atmosfera invernal inspirada nos Highlands escoceses, terra querida por Mademoiselle Chanel. A paleta suave de brancos e beges foi traduzida em tweeds encorpados, capas com bordados que imitam shearling e longos casacos que sugerem peles felpudas, enquanto botas de montaria ancoravam a narrativa.
Apesar da excelência técnica evidente — com rendas guipure, tules em camadas e bordados de penas em leveza flutuante —, a coleção careceu de um ponto de vista mais contundente. Era menos uma história coesa e mais uma vitrine de possibilidades, como se o ateliê oferecesse opções para que as clientes reconfigurassem conforme seu gosto. No entanto, com Matthieu Blazy prestes a assumir em outubro, essa ausência torna-se prólogo: a calmaria antes de uma possível virada de página na história recente da Chanel.

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O primeiro desfile de couture sem Giorgio Armani
Pela primeira vez em duas décadas de Armani Privé, Giorgio Armani não compareceu fisicamente ao seu desfile em Paris. Recuperando-se de uma enfermidade em Milão, o estilista acompanhou cada detalhe à distância. A coleção, Noir Séduisant, provou que mesmo ausente, seu olhar permaneceu onipresente. Um tributo à sedução silenciosa do preto, a passarela foi tomada por silhuetas fluídas, severas e femininas, marcadas por calças de veludo, tops esculturais e jaquetas. Tudo com o brilho controlado de quem domina a linguagem do luxo contido.
Conhecido como mestre da discrição, Armani permitiu aqui lampejos de teatralidade: lantejoulas e cristais surgiam sobre fundos escuros como um sussurro visual. O resultado foi um desfile que não apenas reafirma sua autoridade criativa, mas sublinha sua relevância em tempos em que a elegância clássica volta a ser símbolo de sofisticação moderna.

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O último desfile de Demna para a Balenciaga
O adeus de Demna à Balenciaga foi tudo menos discreto. Em sua última coleção de alta-costura para a maison, o estilista georgiano condensou os códigos que moldaram sua revolução estética na marca ao longo da última década: silhuetas arquitetônicas, ironia afiada, subversão do luxo e uma elegância desconcertante. Em um gesto inédito, ele surgiu ao final do desfile — de moletom e boné — para agradecer ao público e à própria trajetória, quebrando seu hábito de permanecer nos bastidores. O desfile foi concebido como um estudo sobre a burguesia parisiense, com ares de performance e casting estrelado: Kim Kardashian como Elizabeth Taylor, Isabelle Huppert interpretando uma dama francesa com autoconfiança cômica e seu marido, BFRND, desfilando em alfaiataria exagerada. Tudo isso ao som de “No Ordinary Love”, de Sade — uma escolha pessoal e simbólica.
Mais do que um encerramento, o desfile foi um tributo à dualidade entre o legado de Cristóbal Balenciaga e o olhar disruptivo de Demna. Ele revisitou peças históricas, como um tailleur de 1967, mas também reafirmou sua própria autoria com bombers inflados, couros dramáticos e alfaiataria feita com precisão napolitana. Na trilha, os nomes dos colaboradores soavam como agradecimento coletivo, encerrando um ciclo que desafiou os limites da couture tradicional. Ao colocar casacos puffers e camisetas no epicentro da alta-costura e fotografar a campanha final em frente a lojas populares de Paris, Demna tornou a moda mais crua, real e politizada — e provou que o luxo também pode (e deve) ser uma provocação.

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A estreia de Glenn Martens na Margiela
Seguir os passos de John Galliano e Martin Margiela não é tarefa para qualquer um — é preciso coragem, respeito pelo passado e um olhar firme para o futuro. Glenn Martens, natural de Bruges, Bélgica, assumiu o desafio com uma coleção Artisanal que parece saída das profundezas sombrias da história medieval, mas com um toque moderno e inventivo. Realizado nos subterrâneos do Le Centquatre, o desfile evocou a atmosfera austera da Flandres, repleta de texturas envelhecidas, papéis de parede florais rachados e uma profusão de materiais upcycled — do plástico transparente aos jeans pintados à mão, das jaquetas de couro vintage às bijuterias reaproveitadas.
Martens imprimiu sua assinatura com silhuetas que mesclam a escultura gótica e o patchwork artesanal, trazendo uma aura fantasmagórica aos drapeados e corsets de construção incomum. A coleção reverenciou a herança Margiela, sobretudo na máscara que cobre os rostos das modelos, e também prestou homenagem a Galliano com seus volumes dramáticos e teatralidade contida. Mais do que um desfile, foi um rito de passagem que consolidou Martens como o defensor ideal da maison para os tempos atuais — um artista que traduz o passado em poesia visual e desafia a moda a repensar o luxo sob a ótica da sustentabilidade e da memória.
A textura das peças com os materiais upcycled trouxeram um papel central na construção narrativa da coleção: superfícies desgastadas, papéis de parede florais rachados e materiais reaproveitados evocavam a passagem do tempo e a beleza na decadência. O uso de jeans pintados à mão, couro vintage e bijuterias desmontadas resultou em um patchwork de memórias, criando camadas visuais e táteis que desafiavam a noção de acabamento tradicional. Os drapeados pesados, os corsets de estrutura incomum e os tecidos transparentes aplicados sobre estampas criavam uma sensação de profundidade quase arqueológica — como se cada peça carregasse vestígios de uma história a ser desenterrada.

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Viktor & Rolf: A leveza escultural das penas reinventadas
Com uma trajetória que abrange desde alta-costura até fragrâncias ao longo de três décadas, Viktor Horsting e Rolf Snoeren apresentaram uma coleção que explora um dos símbolos mais clássicos e delicados da moda: a pena. A proposta, inédita para a dupla, trouxe uma abundância impressionante de penas — cerca de 11.500 — aplicadas em mangas, golas, anáguas e abas de casacos, criando um efeito visual que transbordava das peças em arabescos coloridos e elaborados.
O aspecto ainda mais surpreendente da coleção está no fato de que nenhuma dessas penas era natural. Cada unidade foi meticulosamente cortada e moldada em tecidos finos, tule ou folhas de polímero, alcançando uma textura e movimento que reproduzem a leveza e a complexidade das penas reais, mas com uma precisão técnica inovadora. Essa experimentação corresponde a metade das silhuetas da coleção, que foram apresentadas em pares — um modelo volumoso, com penas e enchimento, e outro idêntico, mas com caimento fluido e sem volume.

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Bordados Brasileiros em Paris
A colaboração de Ronald van der Kemp com a artista brasileira Thayna Caiçara trouxe à coleção Call of the Wild uma riqueza artesanal única, marcada por bordados que carregam técnicas ancestrais e uma paleta vibrante. Feitos à mão por bordadeiras brasileiras, esses detalhes traduzem a conexão profunda entre moda e natureza, refletindo a força cultural brasileira em cada ponto e textura aplicada às peças. O trabalho minucioso dos bordados adicionou uma dimensão tátil e visual que dialoga perfeitamente com o conceito sustentável e artesanal da coleção.
Esses bordados não são apenas ornamentos, mas elementos vivos que ampliam o discurso da alta-costura eco consciente apresentada por van der Kemp. Em meio a tecidos plissados, colagens e texturas upcycled, as peças bordadas se destacam como verdadeiras narrativas de resistência e valorização do trabalho manual. O resultado é uma coleção que celebra a diversidade cultural brasileira e sua ancestralidade, integrando tradição e contemporaneidade em um diálogo vibrante dentro do universo da moda de luxo sustentável.

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Crochê de impacto: Germanier e Ponto Firme encerram Paris com propósito
Fechando a semana de alta-costura em Paris, o estilista suíço Kevin Germanier apresentou uma coleção vibrante e engajada, marcada por sua sexta colaboração com o brasileiro Gustavo Silvestre. Quatro looks em crochê de ráfia, produzidos por sete artesãos do Projeto Ponto Firme — iniciativa social voltada à reintegração de pessoas em situação de vulnerabilidade — traduziram o encontro entre estética sofisticada e responsabilidade ética. As peças, que somaram mais de 700 horas de trabalho manual, trouxeram à passarela a leveza e a resistência da ráfia, transformadas em tramas esculturais que desafiam as fronteiras do luxo tradicional. Em sua segunda aparição no calendário oficial da haute couture, a parceria reafirmou a potência do design como ferramenta de transformação, cruzando o savoir-faire europeu com a força do artesanato brasileiro em um desfile que combinou inovação têxtil, inclusão e consciência ambiental.

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Robert Wun: surrealismo e metamorfose em cena
No Théâtre de Châtelet, Robert Wun transformou o palco em uma instalação imersiva e quase cinematográfica, conduzindo a plateia por uma narrativa densa sobre identidade, autoimagem e transformação. Inspirado pelo caos dos bastidores do Met Gala, o estilista criou uma coleção que parece uma sequência de cenas: do despertar confuso ao ápice performático de uma grande aparição pública. Vestidos que simulam edredons manchados de sangue, véus com bordados que escorrem como fluidos, colarinhos e gravatas inflados em volumes esculturais — tudo se tornou linguagem visual para contar a história de alguém que se veste para se tornar outro.
Entre trompe-l’oeil, próteses que confundem a anatomia e acessórios que evocam cabides e gestos interrompidos, Wun subverteu códigos da alfaiataria e da moda formal com ironia e teatralidade. As peças incorporaram braços extras, luvas com unhas postiças bordadas e bolsas em forma de blazers dobrados, como se fossem partes de corpos deslocados. No encerramento, a noiva de tule rosado trouxe um toque de fantasia distorcida: vestia um corpete com moldes de mãos defensivas nos quadris e carregava, sobre a cabeça, uma miniatura de busto de costura sustentando o véu — símbolo da costura como ritual de transformação e defesa.